24ª. Cristo apela para o «coração» do homem – 16/04/1980

1. Como tema das nossas futuras reflexões —no âmbito dos encontros de quarta-feira— desejo desenvolver a seguinte afirmação de Cristo, que faz parte do Sermão da Montanha: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coraçãoi. Parece que esta passagem tem para a teologia do corpo um significado-chave, como aquele em que Cristo faz referência ao “princípio”, e que nos serviu de base para as precedentes análises. Pudemos, nessa altura, dar-nos conta de quão amplo foi o contexto de uma frase, melhor, de uma palavra pronunciada por Cristo. Tratou-se não apenas do contexto imediato, evidenciado durante o colóquio com os fariseus, mas do contexto global, que não podemos entender por inteiro sem fazer referência aos primeiros capítulos do Livro do Gênesis (deixando de parte quanto aí se refere aos outros livros do Antigo Testamento). As precedentes análises demonstram quão extenso é o conteúdo que encerra a referência de Cristo ao “princípio”.

O enunciado a que agora nos referimos, isto é, Mt 5, 27-28, introduzir-nos-á com segurança —além de no contexto imediato em que aparece— também no seu contexto mais amplo, no contexto global, através do qual se nos revelará gradualmente o significado-chave da teologia do corpo. Este enunciado constitui uma das passagens do Sermão da Montanha, em que Jesus Cristo faz uma revisão fundamental do modo de compreender e cumprir a lei moral da Antiga Aliança. Isto refere-se, por ordem aos seguintes mandamentos do Decálogo: ao quinto —”não matarás”ii, ao sexto —”não cometerás adultério”iii —é significativo que no final desta passagem apareça também a questão do “ato de repúdio”iv, mencionada já no capítulo precedente—, e ao oitavo mandamento segundo o texto do livro do Êxodov: “Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor”vi.

Significativas são sobretudo as palavras que precedem estas frases —e as seguintes— do Sermão da Montanha, palavras com que Jesus declara: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas: não vim revogá-la, mas completá-la”vii. Nas frases seguintes, Jesus explica o sentido de tal contraposição e a necessidade do “cumprimento” da Lei a fim de realizar o reino de Deus: “Quem… praticar (estes preceitos) e os ensinar aos homens, será considerado grande no reino dos céus”viii. “Reino dos Céus” significa reino de Deus na dimensão escatológica. O cumprimento da Lei condiciona, de modo fundamental, este reino na dimensão temporal da existência humana. Trata-se, todavia, de um cumprimento que corresponde plenamente ao sentido da Lei, do Decálogo, dos mandamentos um por um. Só este cumprimento constrói a justiça querida por Deus-Legislador. Cristo-Mestre adverte que não se dê uma tal interpretação humana de toda a Lei e de cada um dos mandamentos nela contidos, desde que ela não construa a justiça querida por Deus-Legislador: “Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus”ix.

2. É neste contexto que nos surge o enunciado de Cristo segundo Mt 5, 27-28, que pretendemos tomar como base para as presentes análises, considerando-o, com o outro enunciado segundo Mt 19, 3-9 (e Mc 10), como chave da teologia do corpo. Este, tal como o outro, tem caráter explicitamente normativo. Confirma o princípio da moral humana contida no mandamento “não cometerás adultério” e, ao mesmo tempo, determina uma apropriada e plena compreensão deste princípio, isto é, uma compreensão do fundamento e, igualmente, da condição para um seu adequado “cumprimento”; este, de fato, deve ser considerado à luz das palavras de Mt 5, 17-20, já antes referidas, sobre as quais ainda há pouco chamamos a atenção. Trata-se aqui, por um lado, de aderir ao significado que Deus-Legislador encerrou no mandamento “não cometerás adultério”, e, por outro, de realizar aquela “justiça” por parte do homem, a qual deve “superabundar” no próprio homem, isto é, deve atingir nele a sua plenitude específica. São estes, por assim dizer, os dois aspectos do “cumprimento” no sentido evangélico.

3. Encontramo-nos assim no centro do ethos, ou seja, naquilo que pode ser definido como a forma interior, quase a alma da moral humana. Os pensadores contemporâneos (por exemplo Scheler) vêem no Sermão da Montanha uma grande reviravolta precisamente no campo do ethos1. Uma moral viva, no sentido existencial, não é formada apenas pelas normas que revestem a forma dos mandamentos, dos preceitos e das proibições, como no caso do “não cometerás adultério”. A moral em que se realiza o próprio sentido do ser homem —que é, ao mesmo tempo, cumprimento da Lei mediante o “superabundar” da justiça através da vitalidade subjetiva— forma-se na percepção interior dos valores, de que nasce o dever como expressão da consciência e como resposta ao próprio “eu” pessoal. O ethos faz-nos entrar, contemporaneamente, na profundidade da mesma norma e descer ao interior do homem-sujeito da moral. O valor moral tem ligação com o processo dinâmico da intimidade do homem. Para o atingir, não basta deter-se “à superfície” das ações humanas, é preciso entrar precisamente no interior.

4. Além do mandamento “não cometerás adultério”, o decálogo diz também “não cobiçarás a mulher do teu… próximo”x. No enunciado do Sermão da Montanha, Cristo liga-os, de certo modo, um ao outro: “quem olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração”. Todavia, não se trata tanto de distinguir o alcance daqueles dois mandamentos do decálogo, quanto de salientar a dimensão da ação interior, à qual se referem também as palavras: “não cometerás adultério”. Essa ação encontra a sua expressão visível no “ato do corpo”, ato em que participam o homem e a mulher contra a lei da exclusividade matrimonial. A casuística dos livros do Antigo Testamento, compreendida no sentido de investigar aquilo que, segundo critério exteriores, constituía tal “ato do corpo” e, ao mesmo tempo, orientada para combater o adultério, abria-lhe vários “subterfúgios” legaisxi. Deste modo, baseado nos múltiplos compromissos “pela dureza do… coração”xii, o sentido do mandamento, querido pelo Legislador, sofria uma deformação. Olhava-se apenas à observância legal da fórmula que não “superabundava” na justiça interior dos corações. Cristo transpõe a essência do problema para outra dimensão, quando diz: “Quem olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração” (Segundo antigas traduções “… já cometeu adultério com ela no seu coração”, fórmula que parece ser mais exata)2.

Assim, portanto, Cristo apela para o homem interior. Fá-lo mais que uma vez e em diversas circunstâncias. Neste caso, isto torna-se particularmente explícito e eloqüente, não só no que diz respeito à configuração do ethos evangélico, mas também no que se refere ao modo de ver o homem. Não é, pois, só a razão ética, mas também a antropologia a aconselhar que nos detenhamos mais demoradamente sobre o texto de Mt 5, 27-28, que contém as palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha.

1 Ich kenne kein grandioseres Zeugnis für eine solche Neuershliessung eines ganzen Wertbereiches, die das ältere Ethos relativiert, als die Bergpredigt, die auch in ihrer Form als Zeugnis solcher Neuerschliessung und Relativierung der älteren “Gesetzes” —werte sich überall kundgibt: “Ich aber sage euch” (Max Scheler, Der formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, Halle a.d.S., Verlag M. Niemeyer, 1921, p. 316, n. 1).

2 O texto da Vulgata oferece uma tradução fiel ao original: iam moechatus est eam in corde suo. De fato, o verbo grego moicheúo é transitivo. Pelo contrário, nas modernas línguas européias “cometer adultério” é um verbo intransitivo; daí a versão “cometeu adultério com ela”. E assim:

Em português: “… já cometeu adultério com ela no seu coração” (Matos Soares, São Paulo, 1933).

iMt 5, 27-28.

ii Cfr. Mt 5, 21-26.

iii Cfr. Mt 5, 27-32.

iv Cfr. Mt 5, 31-32.

v Cfr. Êx 20, 7.

vi Cfr. Mt 5, 33-37.

viiMt 5, 17.

viiiMt 5, 19.

ixMt 5, 20.

x Cfr. Êx 20, 17; Dt 5, 21.

xi A este propósito, Cfr. a continuação das presentes meditações.

xiiMt 19, 8.