72ª. A espiritualização do corpo fonte da sua incorruptibilidade – 10/02/1982

1. Das palavras de Cristo sobre a futura ressurreição dos corpos, referidas por todos os três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), passamos nas nossas reflexões àquilo que sobre o tema escreve Paulo na primeira Epístola aos Coríntios (cap. 15). A nossa análise centra-se, sobretudo, no que se poderia denominar “antropologia da ressurreição” segundo São Paulo. O autor da Epístola contrapõe o estado do homem “de terra” (isto é, histórico) ao estado do homem ressuscitado, caracterizando, de modo lapidar e penetrante ao mesmo tempo, o interior “sistema de forças” próprio de cada um destes estados.

2. Que este sistema interior de forças deva passar, na ressurreição, por radical mudança, parece indicado, primeiro que tudo, pela contraposição entre corpo “fraco” e corpo “cheio de força”. Paulo escreve: “Semeia-se na corrupção e ressuscita-se na incorrupção. Semeia-se na ignomínia e ressuscita-se na glória. Semeia-se na fraqueza, ressuscita-se na força”i. “Fraco” é, portanto, o corpo que —usando a linguagem metafísica— surge do solo temporal da humanidade. A metáfora paulina corresponde igualmente à terminologia científica, que define o princípio do homem enquanto corpo com o mesmo termo (semen). Se, aos olhos do Apóstolo, o corpo humano, que surge da semente terrestre, resulta “fraco”, isto significa não só que ele é “corruptível”, submetido à morte e a tudo o que a ela conduz, mas também que é “corpo animal”1. Todavia, o corpo “cheio de força”, que o homem herdará do último Adão —Cristo—, enquanto participante da futura ressurreição, será um corpo “espiritual”. Será incorruptível, já não ameaçado pela morte. Assim, portanto, a antinomia “fraco-cheio de força” refere-se explicitamente não tanto ao corpo considerado à parte, quanto a toda a constituição do homem, considerado na sua corporeidade. Só no quadro de tal constituição pode o corpotornar-se “espiritual”; e tal espiritualização do corpo será a fonte da sua força e incorruptibilidade (ou imortalidade).

3. Este tema tem as suas origens já nos primeiros capítulos do Livro do Gênesis. Pode-se dizer que São Paulo vê a realidade da futura ressurreição como certa restitutio in integrum, isto é, como a reintegração e, ao mesmo tempo, a consecução da plenitude da humanidade. Não é só restituição, porque em tal caso a ressurreição seria, em certo sentido, volta àquele estado, em que participava a alma antes do pecado, fora do conhecimento do bem e do malii. Mas essa volta não corresponde à lógica interna de toda a economia salvadora, no mais profundo significado do mistério da redenção. A restitutio in integrum, ligada com a ressurreição e a realidade do “outro mundo”, pode ser só introdução a uma nova plenitude. Esta será uma plenitude que pressupõe toda a história do mundo, formada pelo drama da árvore do conhecimento do bem e do maliii e, ao mesmo tempo, penetrada pelo mistério da redenção.

4. Segundo as palavras da primeira Epístola aos Coríntios, o homem em que a concupiscência prevalece sobre a espiritualidade —isto é, “o corpo animal”iv— é condenado à morte; deve, porém, ressurgir um “corpo espiritual”, o homem em que o espírito obterá uma justa supremacia sobre o corpo, a espiritualidade sobre a sensualidade. É fácil entender que Paulo tem aqui no espírito a sensualidade, como soma dos fatores que formam a limitação da espiritualidade humana, isto é, como força que “liga” o espírito (não necessariamente no sentido platônico) mediante a restrição da sua própria faculdade de conhecer (ver) a verdade e também da faculdade de querer livremente e de amar na verdade. Não pode, contudo, tratar-se aqui daquela função fundamental dos sentidos, que serve para libertar a espiritualidade, isto é, a simples faculdade de conhecer e querer, própria do compositum psicossomático do sujeito humano. Como se fala da ressurreição do corpo, isto é, do homem na sua autêntica coporeidade, por conseqüência o “corpo espiritual” deveria significar exatamente a perfeita sensibilidade de sentidos, a sua perfeita harmonização com a atividade do espírito humano na verdade e na liberdade. O “corpo animal”, que é a antítese terrena do “corpo espiritual”, indica, pelo contrário, a sensualidade como força que muitas vezes prejudica o homem, enquanto ele, vivendo “no conhecimento do bem e do mal”, é solicitado e quase impelido para o mal.

5. Não se pode esquecer que está aqui em questão não tanto o dualismo antropológico, quanto uma antinomia de fundo. Dela faz parte não só o corpo (como hyle aristotélica) mas, também, a alma: ou seja, o homem como “ser vivo”v. Os seus constitutivos, porém, são: – por um lado, todo o homem, o conjunto da sua subjetividade psicossomática, enquanto permanece sob o influxo do Espírito vivificante de Cristo, – por outro lado, o mesmo homem, enquanto resiste e se contrapõe a este Espírito. No segundo caso, o homem é “corpo animal” (e as suas obras são “obras da carne”). Se, pelo contrário, permanece sob o influxo do Espírito Santo, o homem é “espiritual” (e produz o “fruto do Espírito”vi).

6. Por conseguinte, pode-se dizer que, não só em 1Cor 15, encontramos a antropologia da ressurreição, mas que toda a antropologia (e a ética) de São Paulo são penetradas pelo mistério da ressurreição, mediante o qual recebemos definitivamente o Espírito Santo. O capítulo 15 da primeira Epístola aos Coríntios constitui a interpretação paulina do “outro mundo” e do estado do homem naquele mundo, no qual cada um, juntamente com a ressurreição do corpo, participará plenamente no dom do Espírito vivificante, isto é, no fruto da ressurreição de Cristo.

7. Concluindo a análise da “antropologia da ressurreição” segundo a primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, convém-nos uma vez mais dirigir o espírito para aquelas palavras de Cristo sobre a ressurreição e sobre o “outro mundo”, que são referidas pelos evangelistas Mateus, Marcos e Lucas. Recordemo-nos que, respondendo aos saduceus, Cristo juntou a fé na ressurreição com toda a revelação do Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó e de Moisés, o qual “não é Deus dos mortos, mas dos vivos”vii. E, ao mesmo tempo, recusando a dificuldade apresentada pelos interlocutores, pronunciou estas significativas palavras: “Quando ressuscitarem dentre os mortos… nem casarão nem se darão em casamento”viii. Precisamente àquelas palavras —no seu imediato contexto— dedicamos as nossas precedentes considerações, passando depois à análise da primeira Epístola de São Paulo aos Coríntiosix.

Estas reflexões têm significado fundamental para toda a teologia do corpo: para compreender tanto o matrimônio como o celibato “para o reino dos céus”. A este último assunto serão dedicadas as nossas próximas análises.

1 O original grego usa aqui o termo psychikón. Em São Paulo, ele aparece só na primeira Epístola aos Coríntios (2, 14; 15, 44; 15, 46) e não noutra passagem, provavelmente por causa das tendências pré-gnósticas dos Coríntios, e tem um significado pejorativo; no conteúdo, corresponde ao termo “carnale” (cf. 2Cor 1, 12; 10, 4).

Todavia, nas outras epístolas paulinas a “psyche” e os seus derivados significam a existência terrena do homem nas suas manifestações, o modo de viver do indivíduo e até a própria pessoa humana em sentido positivo (p. ex., para indicar o ideal de vida de comunidade eclesial: miâ-i-psychê-i = “num só espírito”: Fl 1, 27; sympsychoi = “com a união dos vossos espíritos”: Fl 2, 2; isópsychon = “de ânimo igual”: Fl 2, 20 (cf. R. Jewett, Paul’s Anthropological Terms. A Study of Their Use in Conflict Settings, Leiden 1971, Brill, pp. 2, 448-449.

i1Cor 15, 42-43.

ii Cf. Gn 1-2.

iii Cf. Gn 3.

iv1Cor 15, 44.

v Cf. Gn 2, 7.

viGl 5, 22.

viiMt 12, 25.

viiiMt 12, 25.

ix1Cor 15.