77ª. A continência por amor do reino dos Céus não diminui o valor do matrimônio – 07/04/1982

1. Com o olhar dirigido para Cristo, o Redentor, continuamos agora as nossas reflexões sobre o celibato e sobre a virgindade “por amor do Reino dos Céus”, conforme as palavras de Cristo referidas no evangelho de Mateusi.

Ao proclamar a continência “por amor do Reino dos Céus”, Cristo aceita plenamente tudo o que desde o princípio foi realizado e instituído pelo Criador. Por conseguinte, de um lado, aquela continência deve demonstrar que o homem, na sua mais profunda constituição, é não apenas “duplo”, mas também (nesta duplicidade) está “só” diante de Deus com Deus. Todavia, de outro lado, aquilo que, no apelo à continência por amor do Reino dos Céus, é um convite à solidão por amor de Deus, respeita ao mesmo tempo quer a “duplicidade da humanidade” (isto é, a sua masculinidade e feminilidade), quer também aquela dimensão de comunhão da existência que é própria da pessoa. Aquele que, em conformidade com as palavras de Cristo “compreende” de modo adequado o convite à continência por amor do Reino dos Céus, segue-o, e conserva assim a verdade integral da própria humanidade, sem perder, com o passar do tempo, nenhum dos elementos essenciais da vocação da pessoa criada “à imagem e semelhança de Deus”. Isto é importante para a idéia mesma, ou melhor, para a idéia da continência, ou seja, para o seu conteúdo objetivo, que aparece no ensinamento de Cristo como novidade radical. É igualmente importante para realizar aquele ideal, isto é, para que a decisão concreta tomada pelo homem de viver no celibato ou na virgindade por amor do Reino dos Céus (o que “se faz” eunuco, para usarmos as palavras de Cristo), se torne plenamente autêntica na sua motivação.

2. Do contexto do evangelho de Mateusii, resulta de modo suficientemente claro que não se trata aqui de diminuir o valor do matrimônio em favor da continência e nem sequer de ofuscar um valor com o outro. Trata-se, pelo contrário, de “sair” plenamente consciente daquilo que no homem, por vontade do mesmo Criador, leva ao matrimônio e de caminhar para a continência, que se revela ao homem concreto, varão ou mulher, como apelo e dom de particular eloqüência e de singular significado “por amor do Reino dos Céus”. As palavras de Cristoiii partem de todo o realismo da situação do homem e com o mesmo realismo conduzem-no para fora, para o chamamento em que, de maneira nova, embora permanecendo pela sua natureza ser “duplo” (isto é, inclinado como homem para a mulher, e como mulher, para o homem), ele é capaz de descobrir nesta sua solidão, que não deixa de ser uma dimensão pessoal da duplicidade de cada um, uma nova e até mesmo mais plena forma de comunhão intersubjetiva com os outros. Esta orientação do chamamento explica de modo explícito a expressão: “por amor do Reino dos Céus”; com efeito, a realização deste reino deve encontrar-se na linha do autêntico desenvolvimento da imagem e da semelhança de Deus, no seu significado trinitário, ou seja, precisamente “de comunhão”. Ao escolher a continência por amor do Reino dos Céus, o homem tem consciência de poder, deste modo, realizar-se a si mesmo “diversamente” e, em certo sentido, “mais” do que no matrimônio, tornando-se “dom sincero de si mesmo aos outros”iv.

3. Mediante as palavras referidas em Mateusv, Cristo faz compreender de modo claro que aquele “caminhar” para a continência por amor do Reino dos Céus está unido a uma renúncia voluntária ao matrimônio, isto é ao estado em que o homem e a mulher (segundo o significado dado pelo Criador “no princípio” à união deles) se tornam dom recíproco através da sua masculinidade e feminilidade, também mediante a união corporal. A continência significa uma renúncia consciente e voluntária a tal união e a tudo o que a ela está ligado na ampla dimensão da vida e da convivência humana. O homem que renuncia ao matrimônio, renuncia igualmente à geração como fundamento da comunidade familiar composta pelos pais e pelos filhos. As palavras de Cristo, a que nos referimos, indicam sem dúvida toda esta esfera de renúncia, embora não se detenham nos pormenores. E o modo como estas palavras foram pronunciadas permite supor que a importância de tal renúncia é compreendida por Cristo e que a compreende não só em relação às opiniões então vigentes na sociedade isrealita sobre o tema. Ele compreende a importância desta renúncia ainda em relação ao bem, que o matrimônio e a família constituem em si mesmos por serem instituição divina. Portanto, mediante o modo de pronunciar as respectivas palavras, faz compreender que aquela saída do círculo do bem, para a qual Ele mesmo chama “por amor do Reino dos Céus”, está ligada a um certo sacrifício de si mesmos. Aquela saída torna-se também o início de sucessivas renúncias e sacrifícios voluntários de si, que são indispensáveis, se a escolha primeira e fundamental for coerente na dimensão de toda a vida terrena; e só graças a tal coerência, aquela opção é interiormente racional e não contraditória.

4. Deste modo, no apelo à continência tal como foi pronunciado por Cristo —concisamente e, ao mesmo tempo, com grande precisão— delineiam-se o perfil e juntamente o dinamismo do mistério da Redenção, como já foi dito antes. É, ao mesmo tempo, perfil sob o qual Jesus, no Sermão da Montanha, pronunciou as palavras acerca da necessidade de vigiar contra a concupiscência do corpo, contra o desejo que inicia com o “olhar” e se torna já naquele momento “adultério no coração”. Por detrás das palavras de Mateus, quer no capítulo 19vi, quer no capítulo 5vii, encontra-se a mesma antropologia e o mesmo ethos. No convite à continência voluntária por amor do Reino dos Céus, as perspectivas deste ethos são ampliadas: no horizonte das palavras do Sermão da Montanha, encontra-se a antropologia do homem “histórico”; no horizonte das palavras sobre a continência voluntária, permanece essencialmente a mesma antropologia, mas irradiada pela perspectiva do “Reino dos Céus”, ou seja, ao mesmo tempo, pela futura antropologia da ressurreição. Todavia, nos caminhos desta continência voluntária na vida terrena, a antropologia da ressurreição não substitui a antropologia do homem “histórico”. E é precisamente este homem, de qualquer modo este homem “histórico”, no qual permanece, ao mesmo tempo, a herança da tríplice concupiscência, a herança do pecado e juntamente a herança da redenção, é este homem a tomar a decisão sobre a continência “por amor do Reino dos Céus”: esta decisão deve ele pô-la em prática, submetendo a pecaminosidade da própria humanidade às forças que brotam do mistério da redenção do corpo. Deve fazê-lo como todos os outros homens que não tomem uma decisão semelhante e cujo caminho seja o matrimônio. É diverso apenas o gênero de responsabilidade pelo bem escolhido, como é diverso o gênero mesmo do bem escolhido.

5. No seu enunciado, põe Cristo porventura em relevo a superioridade da continência por amor do Reino dos Céus sobre o matrimônio? Sem dúvida, ele diz que esta é uma vocação “excepcional”, não “ordinária”. Afirma, além disso, que é particularmente importante, e necessária para o Reino dos Céus. Se compreendemos a superioridade sobre o matrimônio neste sentido, devemos admitir que é indicada por Cristo implicitamente; contudo, não a exprime de modo direto. Só Paulo dirá daqueles que escolhem o matrimônio, que fazem “bem”, e, dos que estão dispostos a viver na continência voluntária, dirá que fazem “melhor”viii.

6. Tal é também a opinião de toda a Tradição, tanto doutrinal como pastoral. Aquela “superioridade” da continência sobre o matrimônio não significa nunca, na autêntica Tradição da Igreja, uma depreciação do matrimônio ou uma diminuição do seu valor essencial. Não significa tampouco um desvio, nem sequer implícito, para as posições maniqueístas ou um apoio a modos de avaliar e de agir que se fundam na compreensão maniqueísta do corpo e do sexo, do matrimônio e da geração. A superioridade evangélica e autenticamente cristã da virgindade, da continência, é, portanto, ditada por motivo do Reino dos Céus. Nas palavras de Cristo, referidas por Mateusix, encontramos uma base sólida para admitir apenas tal superioridade; pelo contrário, não encontramos nelas base alguma para qualquer desmerecimento do matrimônio, que todavia poderia estar presente no reconhecimento daquela superioridade.

Sobre este problema, voltaremos na nossa próxima reflexão.

iMt 19, 10-12.

ii 19, 10-12.

iiiMt 19, 11-12.

ivGaudium et spes, 24.

v 19, 11-12.

vi Vv. 11-12.

vii Vv. 27-28.

viii Cf. 1Cor 7, 38.

ix 19, 11-12.