84ª. A ação da graça de Deus em cada homem na escolha entre virgindade ou matrimônio – 07/07/1982

1. Durante o encontro de quarta-feira passada, procuramos aprofundar a argumentação de que se serve São Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios para convencer, aqueles a quem se dirige, de que faz “bem” quem escolhe o matrimônio mas que, quem escolhe a virgindade (ou seja, a continência segundo o espírito do conselho evangélico), faz “melhor”i. Continuando hoje esta meditação, recordamos que segundo São Paulo “o solteiro cuida do modo como há-de agradar ao Senhor”ii.

O “agradar ao Senhor” tem, como fundo, o amor. Este fundo deriva de um novo confronto: o solteiro cuida do modo como há-de agradar a Deus, ao passo que o homem casado deve preocupar-se também com não descontentar a mulher. Aqui aparece, em certo sentido, o caráter esponsal da “continência por amor do Reino dos Céus”. O homem procura sempre agradar à pessoa amada. O “agradar a Deus” não é, portanto, destituído deste caráter, que distingue a relação interpessoal dos esposos. Por um lado, ele é um esforço do homem que tende para Deus e procura o modo de agradar-lhe, isto é, exprimir ativamente o amor; por outro lado, a esta aspiração corresponde um beneplácito de Deus, que, aceitando os esforços do homem, coroa a própria obra com dar nova graça: desde o princípio com efeito, esta aspiração foi dom Seu. O “cuidar de como agradar a Deus” é, portanto, um contributo do homem no contínuo diálogo da salvação, iniciado por Deus. Evidentemente, nele toma parte todo o cristão que vive da fé.

2. Paulo observa, todavia, que o homem ligado com o vínculo matrimonial “se encontra dividido”iii por causa dos seus deveres familiaresiv. Desta verificação, parece por conseguinte resultar que a pessoa solteira deveria ser caracterizada por uma integração interior, por uma unificação, que lhe permitisse dedicar-se completamente ao serviço do Reino de Deus em todas as suas dimensões. Tal atitude pressupõe a abstenção do matrimônio, abstenção exclusivamente “por amor do Reino dos Céus”, e uma vida dirigida unicamente para esta finalidade. De outro modo, “a divisão” pode furtivamente entrar também na vida de um solteiro que, estando livre, por um lado, da vida matrimonial e, por outro, de uma clara finalidade pela qual deveria renunciar a ela, poderia encontrar-se diante de certo vazio.

3. O Apóstolo parece conhecer bem tudo isto, e apressa-se a especificar que não quer “atirar um laço” àquele a quem aconselha não casar-se, mas fá-lo a fim e o dirigir para aquilo que é digno e que o mantém unido ao Senhor sem distraçõesv. Estas palavras fazem vir à mente o que, durante a Última Ceia, Cristo, segundo o Evangelho de Lucas, diz aos Apóstolos: “Vós estivestes sempre junto de Mim nas Minhas provações (literalmente, “nas tentações”); e Eu disponho a vosso favor do Reino, como Meu Pai dispõe dele a Meu favor”vi. O solteiro, “estando unido ao Senhor”, pode estar certo que as suas dificuldades encontrarão compreensão: “porque não temos um Sumo Sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas. Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, exceto no pecado”vii. Isto permite à pessoa solteira não tanto mergulhar-se exclusivamente nos possíveis problemas pessoais, quanto incluí-los na grande corrente dos sofrimentos de Cristo e do Seu Corpo que é a Igreja.

4. O Apóstolo mostra de que modo se pode “estar unido ao Senhor”: isto pode alcançar-se aspirando a um constante permanecer com Ele, a um gozar da sua presença (eupáredron), sem deixar-se distrair pelas coisas não essenciais (aperispástos)viii.

Paulo concretiza este pensamento ainda mais claramente, quando fala da situação da mulher casada, e da que escolheu a virgindade ou já não tem marido. Ao passo que a mulher casada deve preocupar-se de “como possa agradar ao marido”, a solteira “preocupa-se das coisas do Senhor, para ser santa no corpo e no espírito”ix.

5. Para captar de modo adequado a profundidade do pensamento de Paulo, é necessário observar que a “santidade”, segundo a concepção bíblica, é mais um estado que uma ação; tem um caráter, primeiro que tudo, ontológico e depois também moral. Especialmente no Antigo Testamento, é uma “separação do que não está sujeito à influência de Deus, que é o “profanum“, para pertencer exclusivamente a Deus. A “santidade no corpo e no espírito”, portanto, significa também a sacramentalidade da virgindade ou do celibato, aceitos por amor do “Reino de Deus”. E, ao mesmo tempo, o que é oferecido a Deus deve distinguir-se com a pureza moral e, por isso, pressupõe um comportamento “sem mancha nem ruga”, “santo e imaculado”, segundo o modelo virginal da Igreja que está diante de Cristox.

O Apóstolo, neste capítulo da epístola aos Coríntios, toca os problemas do matrimônio e do celibato ou da virgindade de modo profundamente humano e realista, dando-se conta da mentalidade dos seus destinatários. A argumentação de Paulo é, em certa medida, ad hominem. O mundo novo, a nova ordem dos valores que ele anuncia, deve encontrar-se, no ambiente dos seus destinatários de Corinto, com outro “mundo” e com outra ordem de valores, diversa também daquela a que eram dirigidas, pela primeira vez, as palavras pronunciadas por Cristo.

6. Se Paulo, com a sua doutrina acerca do matrimônio e da continência, se refere também à caducidade do mundo e da vida humana nele, fá-lo certamente com referência ao ambiente, que, em certo sentido, era orientado de modo programático para o “uso do mundo“. Quanto é significativo, deste ponto de vista, o seu apelo “àqueles que usam do mundo”, para que o façam “como se dele se não servissem”xi. Do contexto imediato resulta que também o matrimônio, neste ambiente, era entendido como um modo de “usar o mundo” —diversamente de como tinha sido em toda a tradição israelita (não obstante algumas desfigurações, que Jesus indicou no colóquio com os fariseus, ou no Sermão da Montanha). Indubitavelmente, tudo isto explica o estilo da resposta de Paulo. O Apóstolo dava-se bem conta de que, animado para a abstenção do matrimônio, devia ao mesmo tempo colocar em evidência um modo de compreensão do matrimônio conforme com toda a ordem evangélica dos valores. E devia fazê-lo com maior realismo —isto é, tendo diante dos olhos o ambiente a que se dirigia, as idéias e os modos de apreciar as coisas, nele dominantes.

7. Aos homens que viviam num ambiente, em que o matrimônio era considerado sobretudo como um dos modos de “usar o mundo”, Paulo pronuncia-se com as significativas palavras, quer acerca da virgindade ou do celibato (como vimos), quer também acerca do matrimônio mesmo: “Digo aos solteiros e às viúvas que é melhor permanecer no mesmo estado que eu. Mas, se não agüentarem, casem-se. Porque mais vale casar-se que abrasar-se”xii. Quase a mesma idéia tinha sido expressa por Paulo já antes: “Agora, quanto às coisas que me escrevestes: Penso ser bom que o homem se abstenha da mulher. Mas, dado o perigo da imoralidade, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido”xiii.

8. O Apóstolo, na Primeira Epístola aos Coríntios, não olhará para o matrimônio exclusivamente do ponto de vista de um “remedium concupiscentiae”, como se costumava dizer na linguagem tradicional teológica? Os enunciados, referidos pouco acima, pareceriam testemunhá-lo. Entretanto, na imediata proximidade das formulações referidas, lemos uma frase que nos leva a ver de modo diverso o conjunto do ensinamento de São Paulo contido no cap. 7 da Primeira Epístola aos Coríntios: “Quisera que todos os homens fossem como eu (repete o seu argumento preferido em favor da abstenção do matrimônio); mas cada qual recebe de Deus o seu próprio dom, este de uma maneira, aquele de outra”xiv. Portanto, também aqueles que escolhem o matrimônio e vivem nele, recebem de Deus um “dom”, o “próprio dom”, isto é, a graça própria de tal escolha, deste modo de viver, deste estado. O dom recebido pelas pessoas que vivem no matrimônio, é diverso do recebido pelas pessoas que vivem na virgindade e escolhem a continência por amor do Reino dos Céus; apesar disso, este é um verdadeiro “dom de Deus”, dom “próprio”, destinado a pessoas concretas, e “específico”, isto é, adaptado à vocação de vida que têm.

9. Pode, portanto, dizer-se que, enquanto o Apóstolo, na sua caracterização do matrimônio pela parte “humana” (e talvez ainda mais por parte da situação local que dominava em Corinto), coloca energicamente em relevo o motivo da atenção à concupiscência da carne, ao mesmo tempo faz ele notar, com não menor força de convicção, também o caráter sacramental e “carismático“. Com a mesma clareza, com que vê a situação do homem em relação com a concupiscência da carne, vê também a ação da graça em cada homem —naquele que vive no matrimônio não menos do que naquele que escolhe voluntariamente a continência, tendo presente que “passa a cena deste mundo”.

i1Cor 7, 38.

ii1Cor 7, 32.

iii1Cor 7, 34.

iv Cf. 1Cor 7, 34.

v Cf. 1Cor 7, 35.

viLc 22, 28-29.

viiHb 4, 15.

viii Cf. 1Cor 7, 35.

ix1Cor 7, 34.

xEf 5, 27.

xi1Cor 7, 31.

xii1Cor 7, 8-9.

xiii1Cor 7, 1-2.

xiv1Cor 7, 7.