87ª. O matrimônio como sacramento segundo a Carta de Paulo aos Efésios – 28/07/1982

1. Iniciamos hoje novo capítulo sobre o tema do matrimônio, lendo as palavras de São Paulo aos Efésios:

“As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a Cabeça da Igreja, Seu Corpo, do qual Ele é o Salvador. E, como a Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos seus maridos.

Maridos, amai as vossas mulheres, como também Cristo amou a Igreja e por ela Se entregou, para a santificar, purificando-a no batismo da água pela palavra da vida, para a apresentar a Si mesmo como Igreja gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada. Assim os maridos devem amar as suas mulheres, como aos seus próprios corpos. Aquele que ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; pelo contrário, nutre-a e cuida dela, como também Cristo o faz à sua Igreja, pois somos membros do Seu corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à mulher e passarão os dois a ser uma só carne. É grande este mistério, digo-o, porém, em relação a Cristo e à Igreja. Pelo que se refere a vós, ame também cada um de vós a sua mulher como a si mesmo; e a mulher respeite o seu marido”i.

2. Convém submetermos a análise aprofundada o texto citado, contido neste capítulo quinto da Epístola aos Efésios, assim como, precedentemente, analisamos as palavras de Cristo uma a uma, que parecem ter um significado-chave para a teologia do corpo. Tratava-se das palavras em que se refere Cristo ao “princípio”ii, ao “coração” humano, no Sermão da Montanhaiii, e à futura ressurreiçãoiv. Tudo o que está contido na passagem da Epístola aos Efésios constitui quase a “coroação” daquelas outras sintéticas palavras-chaves. Se delas brotou a teologia do corpo nas suas linhas evangélicas, simples e ao mesmo tempo fundamentais, é necessário, em certo sentido, pressupor esta teologia ao interpretar a mencionada passagem da Epístola aos Efésios. E, por isso, se se quer interpretar esta passagem, é necessário fazê-lo à luz do que nos disse Cristo sobre o corpo humano. Falou não só referindo-se ao homem “histórico” e, por isso mesmo, ao homem sempre “contemporâneo” da concupiscência (ao seu “coração”), mas também fazendo notar, por um lado, as perspectivas do “princípio”, ou seja, da inocênciaoriginal e da justiça e, por outro, as perspectivas escatológicas da ressurreição dos corpos, quando “não se procurará nem mulher nem marido”v. Tudo isto faz parte da ótica teológica da “redenção do nosso corpo”vi.

3. Também as palavras do Autor da Epístola aos Efésios1 estão centradas no corpo; isto tanto no seu significado metafórico, ou seja, sobre o corpo de Cristo que é a Igreja, como no seu significado concreto, isto é, sobre o corpo humano na sua perene masculinidade e feminilidade, no seu perene destino para a união no matrimônio, como diz o Livro do Gênesis: “O homem abandonará o pai e a mãe para se unir à sua mulher, e os dois serão uma só carne”vii.

De que modo estes dois significados do corpo aparecem e convergem na passagem da Epístola aos Efésios? E porque aparecem nela e convergem? Eis as interrogações que é necessário pormo-nos, esperando respostas não tão imediatas e diretas, quanto possivelmente aprofundadas e “a longo prazo”, para as quais fomos preparados pelas análises precedentes. De fato, aquela passagem da Epístola aos Efésios não pode ser corretamente entendida, senão apenas no amplo contexto bíblico, considerando-o como “coroação” dos temas e da verdade que, através da palavra de Deus revelada na Sagrada Escritura, afluem e defluem como em ondas extensas. São temas centrais e verdades essenciais. E, por isso, o texto citado da Epístola aos Efésios é também um texto-chave e “clássico”.

4. É texto bem conhecido pela liturgia, em que aparece sempre em relação com o sacramento do matrimônio. A lex orandi da Igreja vê nele uma explícita referência a este sacramento: e a lex orandi antecipa e, ao mesmo tempo, exprime sempre a lex credendi. Admitindo esta premissa, devemos imediatamente perguntarmo-nos: neste “clássico” texto da Epístola aos Efésios, como brota a verdade sobre a sacramentalidade do matrimônio? De que modo é nele expressa ou confirmada? Tornar-se-á claro que a resposta a estas interrogações não pode ser imediata e direta, mas gradual e “a longo prazo”. Isto é comprovado até por um primeiro olhar para este texto, que nos leva ao Livro do Gênesis e, portanto, “ao princípio”, e que, ao descrever a relação entre Cristo e a Igreja, retoma os escritos dos profetas do Antigo Testamento a bem conhecida analogia do amor esponsal entre Deus e o Seu povo eleito. Sem examinar estas relações, seria difícil responder à pergunta sobre o modo como a Epístola aos Efésios trata da sacramentalidade do matrimônio. Ver-se-á também como a prevista resposta deve passar através de todo o âmbito dos problemas analisados precedentemente, isto é, através da teologia do corpo.

5. O sacramento ou a sacramentalidade —no sentido mais geral deste termo— encontra-se com o corpo e pressupõe a “teologia do corpo”. O sacramento, com efeito, segundo o significado geralmente conhecido, é um “sinal visível“. O “corpo” significa também o que é visível, significa a “visibilidade” do mundo e do homem. Portanto, de algum modo —embora do mais geral— o corpo entra na definição do sacramento, sendo ele “sinal visível de uma realidade invisível”, isto é, da realidade espiritual, transcendente e divina. Neste sinal —e mediante este sinal— Deus dá-se ao homem na sua transcendente verdade e no seu amor. O sacramento é sinal da graça e é sinal eficaz. Não só a indica e exprime de modo visível, à maneira de sinal, mas produ-la, e contribui eficazmente para fazer que a graça se torne parte do homem, e que nele se realize e se complete a obra da salvação, a obra preestabelecida por Deus desde a eternidade e plenamente revelada em Jesus Cristo.

6. Diria que já este primeiro olhar lançado sobre o “clássico” texto da Epístola aos Efésios indica a direção em que devem desenvolver-se as nossas ulteriores análises. É necessário que estas análises comecem pela preliminar compreensão do texto em si mesmo; todavia, devem em seguida conduzir-nos, por assim dizer, além dos seus confins, para compreendermos possivelmente “até ao fundo” quanta riqueza de verdade revelada por Deus está contida no âmbito daquela página estupenda. Servindo-nos da conhecida expressão da Constituição Gaudium et spes, pode-se dizer que a passagem, por nós escolhida na Epístola aos Efésios, “desvela —de modo particular— o homem ao homem e torna-lhe conhecida a sua altíssima vocaçãoviii: enquanto ele participa na experiência da pessoa encarnada. De fato, Deus criando-o à Sua imagem, desde o princípio o criou “homem e mulher”ix.

Durante as sucessivas análises, procuraremos —sobretudo à luz do citado texto da Epístola aos Efésios— compreender mais profundamente o sacramento (em particular o matrimônio como sacramento): primeiro, na dimensão da Aliança e da graça; e, em seguida, na dimensão do sinal sacramental.

1 O problema da paternidade paulina da Epístola aos Efésios, reconhecida por alguns exegetas e negada por outros, pode ser resolvido por meio de uma suposição intermédia, que aceitamos aqui como hipótese de trabalho: ou seja, que São Paulo confiou alguns conceitos ao seu secretário, que depois os desenvolveu e completou.

É esta solução provisória do problema que temos na mente, falando do “Autor da Epístola aos Efésios”, do “Apóstolo” e de “São Paulo”.

iEf 5, 22-33.

iiMt 19, 4; Mc 10, 6.

iiiMt 5, 28.

ivMt 22, 30; Mc 12, 25; Lc 20, 35.

v Cf. Lc 20, 35.

viRm 8, 23.

viiGn 2, 24.

viiiGaudium et spes, 22.

ixGn 1, 27.